
Na foto, integrantes da House of Barracuda. Fundada em 2018, é uma das houses nascidas em Belo Horizonte que mais movimentam a cena ballroom da cidade, reconhecida como a capital nacional do voguing. | Foto: Marcelo Batista

23 JAN, 2025
ballroom
Beagá is burning
Muito mais que competições, as balls refletem a força e a celebração da cena ballroom mineira, em noites que unem tradição, performance e pertencimento
por Juan Santos
Enquanto a música toca ao fundo, as pessoas vão chegando e tomando o Andaluz, um espaço de eventos situado no bairro Santa Tereza, zona leste de Belo Horizonte. Na entrada, após a conferência dos ingressos, uma pessoa recebe os visitantes e carimba a mão de todos com a marca brat ball. É o título desta ball, sediada pela House of Barracuda na noite do primeiro sábado de setembro do ano passado. Lá dentro, onde em outras noites seria a pista de dança, a estrutura para a noite já está montada: no fundo, uma mesa e poucas cadeiras, ainda vazias, formam o júri. Nas duas laterais, o público se organiza em cadeiras que formam longas fileiras, semelhantes a de um desfile de moda. Os mais atrasados ficam em pé, em volta das cadeiras, mas sempre atrás ou ao lado, nunca na frente. Das cadeiras em diante, também como em um desfile, é delimitado o espaço da passarela.

Nas balls, a organização do espaço é semelhante a de um desfile de moda,. | Foto: Marcelo Batista
Fundada em 2018, a House of Barracuda é uma das houses nascidas em Belo Horizonte que mais movimentam a cena ballroom da cidade, reconhecida como a capital nacional do voguing. Segundo Samuel Rubens, pesquisador em comunicação, culturas urbanas, performance, gênero e sexualidade, foi em Minas Gerais, durante os primeiros anos da década de 2010, que tiveram início as práticas da ballroom no Brasil. Em 2013, foi inaugurada a Festa Dengue, que trouxe para a cidade uma competição de performance e dança, organizada através de diferentes categorias, que ficou conhecida como Duelo de Vogue. Nos anos seguintes, com a festa já popularizada, o Trio Lipstick, um grupo de dançarinas e frequentadoras assíduas do evento, fundou o BH Vogue Fever, que seria a primeira ball institucionalizada conforme as regras do movimento cultural registrada no país, ainda segundo esse pesquisador. Em sequência, o grupo funda uma das primeiras casas da cidade, a House of Barracuda. Hoje, a house uma das principais responsáveis por difundir o movimento pelo país e a brat ball marca a realização anual de uma ball própria.
Antes do show começar, é preciso fazer a grand march. Cada uma das casas presentes é convocada e os integrantes desfilam em conjunto pela passarela, exibindo suas habilidades individuais, seja no vogue ou no catwalk. Em uma marcha convicta e segura de quem está jogando em casa, a House of Barracuda toma o espaço. É como assistir a um exército se preparando para a batalha. O grupo se movimenta em uma formação que parece quase coreografada e que serve tanto para exibir o talento de cada um quanto para exaltar a casa como um todo.

A noite é conduzida pela chanter Tasha Dengo (a esquerda), Star Mother da House of Dengo, e pela MC Star Mother Satya Capiva (a direita), da House of Capiva. | Foto: Marcelo Batista
A noite segue um roteiro que adiciona o ingrediente ritualístico ao caldo cultural da ballroom. Não é só uma festa, é uma espécie de cerimônia com começo, meio e fim definidos e divulgados previamente em forma de cronograma. Assim, a grand march é seguida pela roll call, quando as figuras mais proeminentes e presentes da cena ballroom são honradas. Esse momento, assim como todo o ball, é feito no microfone pela chanter Tasha Dengo, Star Mother da House of Dengo, e pela MC Star Mother Satya Capiva, da House of Capiva. A carioca Tasha, convidada e trazida especialmente para o evento, anuncia e entoa as apresentações e batalhas, em uma espécie de locução que mistura narração e interpretação das performances em cena. A condução é feita em parceria com Satya, que introduz e descreve as inúmeras categorias. Na roll call, ela anuncia, individualmente, cada uma das pessoas presentes que possuem títulos LSS (Legends, Statements e Stars) e esses tomam a passarela em um momento de celebração. Tais títulos de prestígio são dados a figuras proeminentes de acordo com sua trajetória e atuação na cena.
Os anúncios são recebidos pela plateia com euforia. Essas figuras, é claro, são celebridades da cena. Quando a Statement Mother Amerikana Dubeco, da casa mineira House of Dubeco, é apresentada, a plateia entra em colapso. Anunciada nas redes sociais do evento como “a única”, a artista é um fenômeno na cena belorizontina e forma o bancada de júri do ball. Enquanto a plateia entoa que “acabou o sossego, porque a Dubeco chegou”, grito de guerra da casa, Amerikana desfila e performa na passarela, como quem sabe o que provoca no público. Os movimentos de vogue são intercalados com pausas nas quais a performer não se surpreende com a enxurrada de aplausos e a exclamação do seu próprio grito de guerra: “A, me, ri, Amerikana!”, ecoam os presentes.

A Statement Mother Amerikana Dubeco, da House of Dubeco, é uma das figuras mais proeminentes da cena belorizontina. | Foto: Marcelo Batista
Feitos os rituais de abertura, a MC Satya Capiva anuncia a primeira leva de categorias. A primeira, baby vogue, dedicada às pessoas iniciantes na dança, é só uma das nove que ainda vão acontecer na noite. Após o anúncio da categoria, qualquer um que queira participar deve se dirigir à passarela para dar o seu nome. Enquanto isso, Tasha faz o chant pelo microfone, ou seja, realiza imitações de sons, dá contagens de one, two, three e entoa versos como Hold that pose for me.
Apesar dos termos serem vocabulário comum da cena, não se trata de uma repetição aleatória de palavras conhecidas. É no ritmo que está o trabalho do chanter, que, interpolando o ritmo da música e o ritmo dos movimentos das performances, tanto segue quanto dá o ritmo do que está acontecendo na passarela. No final de cada performance, o júri levanta uma das placas, marcadas com 10 ou X, que significam, respectivamente, uma avaliação positiva ou negativa. As performances individuais são seguidas pelas batalhas em duplas, nas quais a pessoa vencedora passa para a próxima fase, se for o caso, até que uma saia vitoriosa.
Como em todo ritual, existem regras. Algumas são definidas para cada categoria da noite, como em runway with a prop, que é o uso de uma mala de mão, enquanto outras são clássicas na cultura ballroom. Em determinado momento, uma candidata a uma categoria de vogue toma o palco e seus movimentos parecem não impressionar o júri. Rapidamente, um dos jurados levanta a placa X, mas a competidora continua dançando. Em fração de segundos, a música é interrompida. O comando foi dado por Tasha, no microfone, para o DJ. A confusão de muitos olhares denuncia os visitantes de primeira viagem, mas a chanter logo explica. Em uma ball, a participação é sempre incentivada com o intuito de elevar a cena. Dessa forma, qualquer pessoa que receba um chop, nome dado à reprovação do júri, deve se retirar imediatamente da passarela. Mas o chop não deve ser encarado como um desencorajamento, muito pelo contrário. Após a explicação, Tasha conclui: “Recebeu um chop? Volta pra casa, treina e tenta de novo”.
A participação nas categorias volta a ser tema no decorrer da noite. As primeiras recebem cinco ou seis concorrentes com mais facilidade, mas, com o avanço da noite, as entradas começam a demorar mais e mais. Em alguns momentos, o chamado das hosts é atendido no último segundo, quando alguém toma o palco momentos antes do fechamento da categoria, arrancando berros do público. Mas, em certo ponto, uma categoria fecha com apenas dois participantes, mesmo com alguns acréscimos na contagem. É o suficiente para Tasha voltar ao microfone. A chanter elogia a assiduidade dos rostos mais novos, que estavam bem presentes durante a noite, mas cobra a participação dos veteranos da cena, dizendo que esses também precisam estar ativos para continuar a incentivar os novatos. A bronca surte efeito e as categorias seguintes voltam ao ritmo das primeiras.

Na foto, a Legendary Overseer Lázara Império, da House of Império, se apresenta na categoria hand performance. | Foto: Marcelo Batista
A programação retorna após uma pequena pausa com uma leva de categorias particularmente mais difíceis, deixadas estrategicamente pro final. A categoria hands performance, por exemplo, exige que o competidor mostre seu domínio do vogue exclusivamente através de movimentos com as mãos. Talvez a ideia de uma performance na qual o artista fica imóvel no meio de uma sala possa parecer tediosa para quem nunca assistiu a um ball. Não é o caso aqui. Enquanto uma batida eletrônica densa oferece o pano de fundo, a Legendary Overseer Lázara Império, sem pressa, assume sua posição com os olhos fixos na bancada de jurados. De repente, ela levanta as mãos e a euforia que preencheu o espaço durante todas as performances anteriores vai sendo substituída por um silêncio de atenção. As conversas diminuem e os olhares se voltam fixamente para o centro. É como assistir ao público sendo gradativamente hipnotizado. Os movimentos, lentos no início, desenham ondas e quinas no ar com uma precisão impressionante. Ao longo da apresentação, novas variações vão sendo adicionadas à performance, que vai ficando mais acelerada mas, vez ou outra, encontra um clímax. Quando a batida para e os braços da artista retornam para o lado do seu corpo, é como se o ar retornasse para dentro da sala, que rompe uma enxurrada de aplausos.
O último destaque da noite fica por conta da categoria sex siren com reveal, durante a qual todos os presentes são avisados que é proibido fazer qualquer tipo de foto ou vídeo. A regra é simples — revelar uma peça íntima ao longo da apresentação —, mas os competidores aproveitaram para transformar o ato em um espetáculo à parte. A dança toma um caráter mais lento e sensual, e o foco aqui parece ser muito mais o quanto cada pessoa consegue provocar o público e o júri do que a execução de movimentos precisos. Os competidores seguram a revelação até o último segundo. Cada ameaça e aceno para a cintura parece tirar o ar da sala, que é frustrada sequencialmente mas, em segundos, retorna à mesma concentração anterior.

As performances são avaliadas pelo júri. Na foto, as integrantes do júri (nesta ordem): a Star Mother Kelendria Juicy Couture, a Princess Whattahell Avalanx, a Statement Mother Amerikana Dubeco e a Star Empress Kawa Capiva | Foto: Marcelo Batista
Assim como as categorias precedentes, duas pessoas são encaminhadas para a final. No meio da apresentação, um dos competidores vai até a mesa do júri, tira o short jeans e revela, em um movimento julgado precipitado, uma calcinha por baixo. A revelação arranca uma boa reação dos jurados, apesar de vir aparentemente cedo demais. Segundos depois, entretanto, a escolha de tempo é justificada. Um dos compeditores se posiciona no centro da passarela e tira a calcinha. Na fração de segundo que dura o movimento, a plateia parece congelar em uma mistura de surpresa e curiosidade. Mas ao tirar a peça, o competidor revela uma outra calcinha por baixo. Tirando essa, ele revela outra. E outra. E mais outra. A sequência parecia interminável. Na mesma medida, durante cada revelação, o artista segurava a atenção da sala inteira em suas mãos com a possibilidade daquela ser a última peça. A plateia ficou totalmente entregue àquilo, a combinação de humor e provocação fazia parecer que o show nunca ia acabar. E quando chegou o momento de encerrar, ele fez questão de que as pessoas se preparassem. Dirigiu-se lentamente ao júri e, tampando a parte da frente com as mãos, retirou a última peça. A plateia entrou em colapso. Enquanto todos gritavam, os jurados unânimes levantaram a placa 10, reconhecendo o vencedor.
Com o encerramento das categorias, as hosts retornaram ao microfone. Entre gritos e aplausos, Tasha Dengo e Satya Capiva celebraram os participantes, as casas e, principalmente, a comunidade que dá vida a ballroom. Agradecendo a presença e a dedicação de todos que estavam ali, as hosts reforçam que a cena só dá continuidade enquanto existirem pessoas consumindo e alimentando a cena. Apesar do tom de encerramento, não é o fim da noite. Enquanto a mesa e as cadeiras vão sendo carregadas para os fundos e a música recomeça, o espaço Andaluz se transformava novamente, desta vez em uma pista de dança.
Juan Santos é estudante de Publicidade e Propaganda (UFMG) e criador da Mordidas.
