
Nero (primeira à esquerda) se tornou referência na noite da capital mineira, nos anos 1970, e enfrentou a ditadura; ao seu lado, da esquerda para a direita, outras três transformistas: Vânia Bambirra; não identificada; e Michelle Loren. Foto: Reprodução

23 JAN, 2025
história
De “fazer o travesti” a “drag queen”: notas sobre a arte da montação em Beagá
Nem a truculência da ditadura militar e a epidemia de HIV-Aids deram fim à prática que resiste ao tempo, enquanto se reinventa
por Elias Fernandes
Contar a história da cena drag de Belo Horizonte parece ser uma tarefa um tanto difícil. Pretensiosa até. E realmente é, principalmente se considerarmos a dureza do tempo, que nos faz esquecer do que foi vivido, se não fizermos o esforço de tentar lembrar. Muito da arte da montação não foi registrado, devido à clandestinidade ou mesmo pela disponibilidade de tecnologia para isso. Afinal, falamos de tempos em que celulares não existiam e as câmeras fotográficas e filmadoras eram itens raros, restritos a quem tinha um maior poder aquisitivo. Outro tanto da arte da montação resistiu às décadas pelos registros que foram possíveis e foram preservados e pelo gesto de contar histórias, um guardião da memória que, muitas vezes, é o único a quem podemos recorrer. Mas, apesar da opacidade que perpassa essa trajetória, é inegável que, conforme o tempo passa e à medida em que o país se transforma, a cena drag resiste e se reinventa, ganha novos contornos e se reafirma como expressão de criatividade, identidade e luta.
O termo “drag queen” chegou a Belo Horizonte em meados dos anos 1990, quando influências internacionais, especialmente dos Estados Unidos, foram incorporadas à cena que, já há algumas décadas, agitava as noites da capital mineira. É o que explica o pesquisador Luiz Morando, autor de trabalhos que se debruçam sobre memórias da população LGBTQIAPN+ da cidade, como os livros Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (2020), biografia da travesti que se tornou lenda pelo manuseio da navalha, e Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque (2008), em que revela a existência de um território de convivência homossexual e bissexual no Parque Municipal, nos anos 1940. Morando afirma que, entre as décadas de 1940 e 1960, a expressão “fazer o travesti” era usada para descrever a prática artística de se montar como uma mulher, a partir de uma ideia de feminilidade.
O artista, geralmente um homem cisgênero e homossexual, inspirado por grandes divas da música e do cinema, subia ao palco com a missão de criar essa ilusão, apresentando uma semelhança que fosse tamanha, a ponto de surpreender a plateia. Ali, ele proporcionava uma experiência estética e reflexiva que levava o público a questionar suas próprias percepções sobre gênero e identidade. “Naquela época, esse personagem era chamado de travesti, só que não era travesti com esse conceito de identidade de gênero que a gente tem hoje. Eles eram travestis no sentido da expressão que era usada na época, de fazer essa mudança de identidade para se apresentar, artisticamente, em teatros e boates”, diz o pesquisador.
A ascensão das boates
A expressão, contudo, foi se esvaziando a partir dos anos 1960, devido ao estigma associado às travestis – agora sim enquanto identidade de gênero –, cujas imagens eram exploradas pela imprensa nos cadernos de polícia; caso de Cintura Fina, por exemplo, presença constante nas fábulas policialescas que documentavam a interseção entre a violência e a boemia no baixo centro da cidade. Nesse cenário, emergiu um outro termo, o “transformismo”, que trouxe uma outra perspectiva à arte da montação, ao incorporar elementos que convergiam para além da “ilusão”, como a teatralidade e o humor, tornando-a mais interativa e, em alguma medida, mais performática.
O nome se consolidou nas décadas seguintes, marcadas pela efervescência das noites nas boates de Belo Horizonte, como La Rue, Bigots e Cavalo Branco. Frequentadas por pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ e heterossexuais menos caretas, as casas se tornaram palcos vibrantes de espetáculos de artistas que se destacaram com suas performances, como Sofia de Carlo, Walkíria La Roche e Nero. Mais do que isso, transformaram-se em importantes espaços de sociabilidade para o público queer e de resistência à exclusão social, com uma atmosfera de liberdade e celebração da diversidade.
Nos pequenos palcos, muitas vezes improvisados, artistas se apresentavam ao som das vozes que melhor traduziam a atmosfera das noites. Hits como “Hot Stuff” e “Greatest Love of All”, de Donna Summer e Whitney Houston, ecoavam pelas paredes e criavam uma trilha sonora que embalsamava o ambiente. As performances eram verdadeiros espetáculos de exuberância e criatividade, marcadas pela ostentação dos figurinos. Os vestidos, meticulosamente bordados, longos e decotados, em tecidos como o cetim, refletiam os jogos de luzes e muitas vezes traziam plumas que dançavam a cada movimento. Acessórios extravagantes, como colares brilhantes, brincos pesados e anéis de pedras, multiplicavam-se pelos pescoços, mãos e orelhas, e dava um toque de opulência às transformistas. Os penteados, parte fundamental dos espetáculos, coroavam as artistas e variavam entre perucas muito bem elaboradas, com cachos volumosos e tons de loiro, e os próprios cabelos, estilizados, desafiando as convenções. Essas são descrições que, de fato, soam um tanto altivas; porém, em se tratando de montação, a excentricidade é um conceito-chave. E não faltam nomes que confirmam isso.
Sofia de Carlo, figura emblemática da cidade, despontou ao vencer o primeiro concurso Miss Travesti Minas Gerais, realizado pela boate Cavalo Branco, aos 19 anos, em 1966. O evento, que reuniu dez travestis de Belo Horizonte, foi a sua porta de entrada para a cena. Em coluna assinada para o jornal Diário da Tarde, em 1972, a jornalista Anna Marina celebrou a artista: “O tumulto aumenta quando chega a rainha delas, Sofia de Carlo, toda vestida de dourado (...). A cabeleira postiça, laboriosamente trabalhada e loura e enorme, uma leoa de melhores épocas”. Sofia chegou a assumir a direção de diferentes casas noturnas nas décadas seguintes e faleceu em 2006, sendo lembrada, desde 2022, pela exposição “Entre gritinhos e emoções: 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte”, que segue em exibição no portal do Museu Bajubá.
Walkíria La Roche, outro nome de destaque, surgiu na noite de Belo Horizonte em meados dos anos 1970. Expulsa de casa aos 16 anos, pela família que não aceitava a sua transexualidade, encontrou nas boates o acolhimento que precisava. Passou por casas como Plumas e Paetês e Bar Soft, onde fez seu primeiro show, e de lá para cá são mais de 40 anos de carreira: “Sempre fui polêmica. Inverti o tradicional show de strip-tease feminino para o masculino. Fui a primeira artista a performar com gogoboys, na Josefine”, escreveu em coluna publicada pelo jornal Estado de Minas. Em meio à epidemia da aids, Walkíria se notabilizou pelo ativismo à frente do Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) e chegou a ser censurada por donos de boates, que não queriam ouvir menções ao tema, tremendo assustar a clientela. É memória viva do assunto, sempre requisitada para falar sobre ele, assim como Nero, outra figura central da cena, que mantém aberto um salão de beleza na Galeria do Ouvidor.
Sem sobrenome, porque o primeiro nome bastava, Nero chegou à cidade em 1967, vindo de São João Del Rei, e também passou por diferentes casas, como o bar Sagarana, no edifício Maletta, e as boates Sukata e Chez Eux. Nos espetáculos, fazia dublagens, stripteases e formas de interação com o público. Era conhecido pela sua beleza, naquela época apontada como andrógina, que chamava a atenção de quem passava por ele: “Eu tinha o cabelo na cintura, tomava hormônio, tinha seios, corpo feminino, era uma pessoa muito bonita. Então, chamava muito a atenção de homens, mulheres, héteros, homossexuais, de todo mundo”, contou ao pesquisador Luiz Morando, em 2003, durante uma entrevista. Exatamente por desafiar normas de gênero, inúmeras vezes foi interpelado pela polícia.
Os anos de chumbo
Em meio à ditadura militar (1964-1985), a repressão, forte e sistemática, foi um reflexo da situação vivida pelo país naquele momento, de censura e controle moral. Transformistas e travestis eram alguns dos alvos prioritários das autoridades, que enxergavam em suas existências uma afronta à ordem social. Nesse sentido, a Delegacia de Costumes desempenhava um papel central nessa perseguição, monitorando os locais mais frequentados pela comunidade e realizando batidas, sob qualquer pretexto, que resultavam em humilhações públicas e fichamentos policiais.
Os policiais entravam nas boates, desligavam a música, revistavam quem estivesse por ali e, não raramente, levavam pessoas presas. As operações eram vistas como “limpezas”, justificadas pela suposição de que havia atividades ilegais nos espaços, como o uso de drogas ou a presença de pessoas menores de idade. “As radiopatrulhas paravam de ré, colocavam todo mundo nas viaturas, levavam para o Distrito Policial, faziam fotos, fichavam todo mundo. E todo mundo tinha medo”, contou Nero ao podcast Cidade das Maravilhas, publicado no último ano pelo G1. “A polícia perseguia mesmo, batia nas pessoas, rodava a cidade toda com o pessoal homossexual dentro da viatura”, relembrou o cabeleireiro.
A primeira edição do concurso Miss Travesti Minas Gerais, realizado em 1966, só pôde ocorrer sob rígidas condições impostas pela polícia, como a proibição de que os participantes chegassem ou saíssem do local montados. Segundo Luiz Morando, desde 1959, antes mesmo do regime militar, já havia tentativas para realização do concurso, mas a polícia sempre impedia. Isso não impediu que a prática da montação acontecesse em concursos organizados de forma clandestina. “Isso mostra a atenção constante da Polícia Civil para proibir a realização de formas de sociabilidade por parte de homossexuais, travestis, lésbicas, mas por outro lado, mostra que sempre houve essas formas de sociabilidade”, diz.
Naquele tempo, prisões por “vadiagem” eram comuns, baseadas em um decreto-lei de 1941, assinado por Getúlio Vargas, que considerava contravenção penal “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastante de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”. Na prática, qualquer pessoa que estivesse andando pela rua poderia ser alvo da violência policial, principalmente se pertencesse a algum grupo discriminado, como eram os casos de pessoas gays, travestis e negras.
Nero foi preso mais de uma vez, por usar roupas que não eram consideradas apropriadas para homens. “Eu comecei a usar blusas curtas, com umbigo de fora, e calças baixas. E as calças eram boca de sino. Todos os dias, eu saía do trabalho e era preso na porta da galeria. Eles me punham dentro da rádio-patrulha e passeavam comigo por duas, três horas. Me soltavam, depois, lá onde hoje em dia tem o Shopping Ponteio”, contou, em entrevista a Luiz Morando.
Walkíria La Roche também passou por situações semelhantes. Nas batidas policiais que resultaram em prisões, afirma ter visto colegas serem levadas e abandonadas em pontos da cidade: “Foi muito pesado esse período. Pegavam travestis e jogavam no sumidouro da Lagoa da Pampulha. Tenho amiga que já voltou de peruca na mão, ensopada, e contou para a gente”. Não apenas nas boates, foi interpelada também fora delas, em razão de sua transexualidade. “Uma vez, eu estava pegando ônibus da Afonso Pena. Tava chovendo, desci, a polícia me parou, pediu para abrir a bolsa, perguntou se eu estava com gilete na boca, pegou as minhas coisas todas e jogou no chão. Sorte que eu não apanhei nem fui presa. Mas perdi a noite, o patrão não me deixou trabalhar”, contou ao podcast.
A epidemia de HIV-Aids
Enquanto a ditadura militar perdia força, em meados dos anos 1980, a comunidade LGBTQIAPN+ se deparava com um outro grande problema. A cena noturna, que se expandia com o crescimento das boates, foi abruptamente impactada pela epidemia de HIV-Aids, que rapidamente se tornou um verdadeiro pesadelo para muitas pessoas. Num tempo em que as informações sobre o assunto ainda eram esparsas, o pânico em torno da chamada “peste gay”, termo pejorativo utilizado por certos setores da sociedade, contribuiu para reforçar estigmas relacionados a corpos e identidades que fugiam ao sujeito universal. Essa situação não apenas desumanizou essas pessoas, negando-lhes dignidade, como também confrontou o fundamental direito à vida.
Qualquer problema de saúde que uma pessoa gay ou travesti viesse a apresentar logo poderia gerar o temor de que ela estaria infectada com o vírus HIV; a magreza, então, soava como o prelúdio de uma morte que se aproximava. Naquele cenário, a segregação se tornava uma resposta previsível a quem se infectasse, tornando a doença também “social”, nas palavras do romancista João Silvério Trevisan, na obra em que narra o recebimento e a maneira como lidou com seu diagnóstico, Meu irmão, eu mesmo (2023). O terror ainda colaborava para a disseminação de mentiras sobre o contágio, que atrapalhava a conscientização sobre como se proteger. Todo o turbilhão, entre outros fatores, foi terreno fértil para que as infecções avançassem e, pouco a pouco, alguns rostos se tornassem ausentes nas casas. Mas o sumiço de quem partia, bastante sentido, mal poderia ser debatido e se tornava, em alguma medida, silencioso; afinal, naquela altura, ser gay ou travesti era visto por muitos como estar na fila da morte. E a próxima vítima poderia ser qualquer pessoa.
As boates não se esvaziaram, mas os relatos de quem as frequentava indica que o clima de apreensão afetou a frequência e a dinâmica das relações que ali se estabeleciam. “A epidemia de HIV e aids não vai fechar esses ambientes. Vai criar esse clima de apreensão e medo, mas não fecha. E não impede que as pessoas continuem fazendo sexo casual, elas só vão precisar introduzir a camisinha, que não era um artigo de uso constante. Vai precisar inserir camisinha nessa história, o que não vai ser também uma coisa fácil, porque surgem aqueles clichês”, explica o pesquisador Luiz Morando. O uso da camisinha foi incentivado, e as artistas, ainda chamadas de transformistas, desempenharam um papel fundamental nessa conscientização, mesmo a contragosto de quem dirigisse as boates.
“Os donos das casas noturnas não gostavam que a gente falasse de prevenção à aids, sobre o uso de preservativo, que não era moda. Eu entrava e falava mesmo, porque a gente tinha pânico”, contou Walkíria La Roche ao Cidade das Maravilhas. A arte da montação, que já passava por transformações ao longo das décadas e se adaptava às condições sociais, incorporou novos elementos de ativismo, com mensagens de prevenção e empoderamento, num enfrentamento aos estigmas da epidemia e fortalecimento dos laços entre a comunidade, já muito atacada por quem estava de fora. O tempo foi mostrando que o terror em torno do assunto poderia ser confrontado com informação e que a infecção não era sinônimo de morte. Havia, além dos preservativos para a prevenção, tratamento para quem tivesse o vírus HIV.
O palco é qualquer lugar
As boates continuaram sendo cenários de espetáculos das drag queens, como passaram a ser chamadas, no decorrer dos anos 1990. Algumas casas fecharam as portas, outras surgiram e, com elas, novas gerações de artistas que também se firmaram na cena noturna da cidade. A partir daquela década, os espaços que recebiam as drag queens se ampliaram para além das boates, as artistas passaram a ser contratadas também para festas particulares e iniciaram um processo de profissionalização, segundo Luiz Morando. Ser drag queen, assim, foi se tornando uma profissão para muitas das artistas, que nem só da noite passaram a viver, mas também das tardes e manhãs.
Se, há algumas décadas, a arte da montação passava pela ilusão, inspirada nas grandes divas da música e do cinema, e pela transformação no palco, com um quê de teatralidade, dali em diante um componente passou a roubar a cena: o exagero. As perucas e penteados ficaram maiores e mais volumosos; os figurinos, mais espalhafatosos; as maquiagens se tornaram mais vibrantes; as dublagens ou lipsyncs ganharam mais movimento; e o humor caricato cresceu como nunca antes. É claro que tudo isso não era inédito e muitas artistas já se destacavam por algum ou outro elemento, mas a nova fase ficou caracterizada pela extravagância, o que ainda é percebido hoje em dia.
O resultado dessas transformações – e muitas outras, anteriores e posteriores a elas – se vê na atual cena drag de Belo Horizonte, que segue se reinventando e fazendo a roda girar. As artistas estão nas boates, nos bares, nos teatros e nas festas. Estão nas redes sociais, na televisão, nos podcasts e na rádio. São de diferentes gerações e carregam inspirações diversas, muitas vezes da própria cena; não por acaso, frequentemente fazem referências umas às outras quando estão sobre um palco. Suas identidades são múltiplas e revelam a diversidade de gênero, sexualidade, raça e classe social que, dia após dia, se faz percebida. O cenário de hoje, sem dúvidas, é outro ao dos anos 70, 80 ou 90, mas, ao olharmos com atenção, percebemos que a arte da montação segue refletindo os anseios e as demandas do tempo. Esse é um movimento interessante e necessário para entendermos um pouco como ela se move.
Elias Fernandes é jornalista (UFOP), mestre em Comunicação (UFOP) e doutorando em Comunicação Social (UFMG).
