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Beagá is burning

  • Foto do escritor: Juan Pablo
    Juan Pablo
  • 26 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura


Enquanto a música toca ao fundo, as pessoas vão chegando e tomando o Andaluz, um espaço de eventos situado no bairro Santa Tereza, zona leste de Belo Horizonte. Na entrada, após a conferência dos ingressos, uma pessoa recebe os visitantes e carimba a mão de todos com a marca “brat ball”. É o título desta ball, sediada pela House of Barracuda na noite do primeiro sábado de setembro de 2023. Lá dentro, onde fica a pista de dança, a estrutura para a noite já está montada: no fundo, uma mesa e algumas poucas cadeiras, ainda vazias, formam o júri. Nas duas laterais, o público se organiza em cadeiras que formam longas fileiras, semelhantes a de um desfile de moda. Os mais atrasados ficam em pé, em volta das cadeiras, mas sempre atrás ou ao lado, nunca na frente. Das cadeiras em diante, também como em um desfile, é delimitado o espaço da passarela. 


Antes do show começar, é preciso fazer a grand march. Cada uma das casas presentes é convocada e os integrantes desfilam em conjunto pela passarela, exibindo suas habilidades individuais, seja no vogue ou no catwalk. Em uma marcha convicta e segura de quem está jogando em casa, a House of Barracuda toma o espaço. É como assistir a um exército se preparando para a batalha. Ao mesmo tempo, é como assistir a uma equipe atlética celebrando seus membros. O grupo se movimenta em uma formação que parece quase coreografada e que serve tanto para exibir o talento de cada um quanto para exaltar a casa como um todo. Essa exaltação do coletivo é essencial dentro da cultura ballroom. De cara, fica evidente que os únicos funcionários do estabelecimento são os que trabalham no bar, provavelmente em exigência do próprio Andaluz. Todas as outras funções são feitas por pessoas da Barracuda, seja na entrada ou no interior. Um acidente com uma garrafa d’água, por exemplo, logo é resolvido por uma pessoa usando um casaco felpudo verde. Essa pessoa é Dante Francisco, Father da casa mãe do evento.


A noite segue uma coreografia que adiciona um ingrediente ritualístico ao caldo cultural do ballroom. Não é só uma festa, é uma espécie de cerimônia com começo, meio e fim definidos e divulgados previamente em forma de cronograma. Assim, a grand march é seguida pela roll call, quando as figuras mais proeminentes e presentes da cena ballroom são honradas. Esse momento, assim como todo o ball, é feito pelo no microfone pela chanter Tasha Dengo, Star Mother da House of Dengo e pela MC Star Mother Satya Capiva, da House of Capiva. A carioca Tasha, convidada e trazida especialmente para o evento, anuncia e entoa as apresentações e batalhas, numa espécie de locução que mistura narração e interpretação das performances em cena. A condução é feita em parceria com Satya, que introduz e descreve as inúmeras categorias. Na roll call, ela anuncia, individualmente, cada uma das pessoas presentes que possuem títulos LSS (Legends, Statements e Stars) e esses tomam a passarela em um momento de celebração.

Os anúncios são recebidos pela plateia com euforia. Essas figuras, é claro, são celebridades da cena. Quando a Statement Mother Amerikana Dubeco, da casa mineira House of Dubeco, é apresentada, a plateia entra em colapso. Anunciada nas redes sociais do evento como “a única”, a artista é um fenômeno na cena belorizontina. Enquanto a plateia entoa que “acabou o sossego, porque a Dubeco chegou”, grito de guerra da casa, Amerikana desfila e performa na passarela, como quem sabe o que provoca no público. Os movimentos de vogue são intercalados com pausas nas quais a performer não se surpreende com a enxurrada de aplausos e o grito do seu próprio grito de guerra: “A-, me-, ri-, Amerikana!”, ecoam os presentes. 


Feitos todos os rituais de abertura, a MC Satya Capiva anuncia a primeira leva de categorias. A primeira, baby vogue, dedicada às pessoas iniciantes na dança, é só uma das nove que ainda vão acontecer na noite. Após o anúncio da categoria, qualquer um que queira participar deve se dirigir à passarela para dar o seu nome. Enquanto isso, Tasha faz o chant pelo microfone, ou seja, realiza imitações de sons, dá contagens de “one, two, three” e entoa versos como “Hold that pose for me”.


Apesar dos termos serem vocabulário comum da cena, não se trata de uma repetição aleatória de palavras conhecidas. É no ritmo que está o trabalho do chanter, que, interpolando o ritmo da música e o ritmo dos movimentos das performances, tanto segue quanto dá o ritmo do que está acontecendo na passarela. No final de cada performance, o júri levanta uma das placas, marcadas com 10 ou X, que significam, respectivamente, uma avaliação positiva ou negativa. As performances individuais são seguidas pelas batalhas em duplas, nas quais a pessoa vencedora passa para a próxima fase, se for o caso, até que uma saia vitoriosa.


Como em todo ritual, existem regras. Algumas são definidas para cada categoria naquela noite, como em runway with a prop, que é o uso de uma mala de mão. Enquanto outras são clássicas na cultura ballroom. Em determinado momento, uma candidata a uma categoria de vogue toma o palco e seus movimentos parecem não impressionar o júri. Rapidamente, cada um dos cinco levanta a placa X, mas competidora continua dançando. Em fração de segundos, a música é interrompida. O comando foi dado por Tasha, no microfone, para o DJ. A confusão de muitos olhares denuncia os visitantes de primeira viagem, mas a chanter logo explica. Em uma ball, a participação é sempre incentivada com o intuito de elevar a cena. Dessa forma, qualquer pessoa que receba um boot, nome dado à reprovação total do júri, deve se retirar imediatamente da passarela. Mas o boot não deve ser encarado como um desencorajamento, muito pelo contrário. [] Após a explicação, Tasha conclui: “Recebeu um boot? Volta pra casa, treina e tenta de novo”.


A participação volta a ser tema no decorrer da noite. As primeiras categorias recebem cinco ou seis concorrentes com mais facilidade, mas com o avanço da noite, as entradas começam a demorar mais e mais. Em alguns momentos, o chamado das hosts é atendido no último segundo, quando alguém toma o palco momentos antes do fechamento da categoria, arrancando berros do público. Mas, em certo ponto, uma categoria fecha com apenas dois participantes, mesmo com alguns acréscimos na contagem. É o suficiente para Tasha ir ao microfone. [No evento ela fala sobre como os mais velhos da cena precisam entrar nas categorias para incentivar os mais novos, que a cena só continua se tiver gente ativo e participando das categorias]. A bronca surte efeito e as categorias seguintes voltam ao ritmo das primeiras.


A programação volta após uma pequena pausa com uma leva de categorias particularmente mais difíceis, provavelmente deixadas estrategicamente pro final. A categoria hands performance, por exemplo, exige que o competidor mostre seu domínio do vogue exclusivamente através de movimentos com as mãos. Talvez a ideia de uma performance na qual o artista fica imóvel no meio de uma sala possa parecer tediosa para quem nunca assistiu a um ball. Não é o caso aqui. Enquanto uma batida eletrônica densa fornece o pano de fundo, a artista Lázara Dos Anjos, sem pressa, assume sua posição com os olhos fixos na bancada de jurados. De repente, ela levanta as mãos e a euforia que preencheu o espaço durante todas as performances anteriores vai sendo substituída por um silêncio de atenção. As conversas diminuem e os olhares se voltam fixamente para o centro. É como assistir ao público sendo gradativamente hipnotizado. Os movimentos, lentos no início, desenham ondas e quinas no ar com uma precisão impressionante. Ao longo da apresentação, novas variações vão sendo adicionadas à performance que, é claro, não é feita aleatoriamente.


O último destaque da noite fica por conta da categoria sex siren com reveal, durante a qual todos os presentes são avisados que é proibido fazer qualquer tipo de foto ou vídeo. A regra é simples — revelar uma peça íntima ao longo da apresentação —, mas os competidores aproveitaram para transformar o ato em um espetáculo à parte. A dança toma um caráter mais lento e sensual, e o foco aqui parece ser muito mais o quanto cada pessoa consegue provocar o público e o júri do que a execução de movimentos precisos. Os competidores seguram a revelação até o último segundo. Cada ameaça e aceno para a cintura parece tirar o ar da sala, que é frustrada sequencialmente mas, em segundos, retorna à mesma concentração anterior. Assim como as categorias anteriores, duas pessoas são encaminhadas para a final. No meio da apresentação, um dos competidores vai até a mesa do júri, tira o short jeans e revela, em um movimento julgado precipitado, uma calcinha por baixo. A revelação arranca uma boa reação dos jurados, apesar de vir aparentemente cedo demais. Segundos depois, entretanto, a escolha de tempo é justificada. Fulano se posiciona no centro da passarela e tira a calcinha. Na fração de segundo que dura o movimento, a plateia parece congelar em uma mistura de surpresa e curiosidade. Mas ao tirar a peça, o competidor revela uma outra calcinha por baixo. Tirando essa, ele revela outra. E outra. E mais outra. A sequência parecia interminável. Na mesma medida, durante cada revelação, o artista segurava a atenção da sala inteira em suas mãos com a possibilidade daquela ser a última peça. A plateia ficou totalmente entregue àquilo, a combinação de humor e provocação fazia parecer que o show nunca ia acabar. E quando chegou o momento de encerrar, ele fez questão de que as pessoas se preparassem. Se dirigiu lentamente ao júri e, tampando a parte da frente com as mãos, retirou a última peça. A plateia entrou em colapso. Enquanto todos gritavam, todos os jurados levantaram a placa 10, reconhecendo o vencedor da categoria.


Com o encerramento das categorias, as hosts retornaram ao microfone. Entre gritos e aplausos, Tasha Dengo e Satya Capiva celebraram os participantes, as casas e, principalmente, a comunidade que dá vida ao ballroom. Agradecendo a presença e a dedicação de todos que estavam ali, as hosts reforçam que a cena só dá continuidade enquanto existirem pessoas consumindo e alimentando a cena. Apesar do tom de encerramento, não é o fim da noite. Enquanto a mesa e as cadeiras vão sendo carregadas para os fundos e a música recomeça, o espaço Andaluz se transformava novamente, desta vez em uma pista de dança.

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