
Dolly Piercing caracterizada para o show de "Um Grito de Estrelas" uma homenagem a Ney Matogrosso com sua banda Dolly and Piercings em 2017. | Foto: Rafael Sandim

23 JAN, 2025
entrevista
Uma deusa, uma diva, um ícone
Dolly Piercing celebra 30 anos de carreira como drag queen, sendo a primeira drag cantora de BH, com a estreia de seu primeiro espetáculo solo e compartilha nesta entrevista um pouco de sua singular trajetória artística
por Juarez Guimarães Dias
Nascida sob o signo de Leão, a atriz, drag queen e cantora Dolly Piercing desafia quando se trata de encontrar adjetivos que a qualifiquem. Dona de uma presença marcante e de uma beleza hipnotizante, suas performances camaleônicas atraem imediatamente os olhares onde quer que se apresentem, seja em boates, casas noturnas, eventos e espetáculos cênico-musicais. Essa leonina é sedutora e atraente, de personalidade forte e arisca, e tem as garras prontas para se defender de ataques, preconceitos e violências, sempre que for preciso.
Com uma trajetória iniciada como atriz no teatro em 1993 com a peça Rir é o melhor remédio, dois anos depois criou sua drag queen cantora até que, em 2011, fundou a banda Dolly and Piercings ao lado do baixista Leo Ribeiro, a guitarrista trans Nikky Rose e a baterista Carol Biscuit, celebrando a diversidade sexual e de gênero por meio de versões de músicas consagradas do rock, da MPB e do pop. Em cartaz atualmente como atriz convidada na peça Thácht do Grupo Armatrux, e com participação no Xou do Xac de Gabriel Castro Cavalcante, ela prepara seu primeiro espetáculo solo, com dramaturgia e direção minhas, e estreia prevista para junho de 2025 em Belo Horizonte. Nesta entrevista concedida por e-mail e especialmente para a Mordidas, Dolly compartilha o brilho e os desafios dessa trajetória.
Você está completando este ano 30 anos de carreira como drag queen, tendo começado nos anos 1990 quando a ideia do que era esse tipo de performance começava a chegar timidamente no Brasil, o que faz de você uma das precursoras em BH. Como foi essa história?
É uma trajetória que tenho muito amor de ter vivido de forma autêntica e ousada. É importante dizer que antes de ser drag sou atriz e comecei cedo. Não virei drag da noite para o dia, nem utilizei essa manifestação artística como apelo visual para me destacar dos demais cantores. Primeiro comecei como atriz, depois drag, depois cantora. Essa ordem é importante para a pessoa leitora entender que nunca fui aventureira e não sou desonesta.
Eu iniciei no teatro que me ajudou muito tanto nas performances quanto na música. Quando comecei nos anos 90, a cena drag como se vê atualmente (distinta da cena transformista) estava engatinhando no Brasil, e em Belo Horizonte, então, quase ninguém sabia o que era uma drag queen, principalmente em um contexto de música e performance. Fui uma das primeiras a unir a identidade drag com a música no Brasil, criando uma representação não só visual, mas também sonora, o que me tornou a primeira drag cantora da cidade.
Aquela época foi muito de resistência e descoberta, porque não existia uma estrutura, nem visibilidade para o que fazíamos. Os efeitos da globalização que hoje usufruímos não estavam começando. Internet, compras on-line, produtos específicos para drag - peruca, numeração de saltos entre outros artigos - eram escassos e caros. Os tutoriais eram programas de TV, quando você não tinha idade para frequentar as boates que eram guetos restritos. Era um movimento muito solitário e tão competitivo quanto hoje, mas também muito potente, onde a arte drag ainda era vista como algo marginal para o grande público, mas por outro lado, era o momento auge das noites gays da cidade. A luta pela aceitação em uma escala maior estava apenas começando. Ao longo dos anos, a cena foi ganhando mais força e visibilidade, graças às drags Yoko e Marquinhos Twiggy que foram precursoras a ter visibilidade na mídia local. Foi maravilhoso ver essa transformação, especialmente em BH.
Eu comecei minha carreira em 28 de janeiro de 1995, no ano em que iria completar 18 anos, em agosto. Minha trajetória teve início após uma visita a uma boate alternativa que reunia diversas tribos, onde fui convidada pelo proprietário da casa, Omar Rangel, para fazer uma performance no dia seguinte. E foi ali, naquele momento, que surgiu a Dolly Piercing.
No ambiente alternativo, fui bem recebida e fui rapidamente aceita, pois era um espaço onde as pessoas estavam abertas a experimentações. No entanto, ao me apresentar em espaços mais voltados para o público tipicamente gay, percebia uma certa estranheza, principalmente devido à diferença entre as transformistas e o conceito de drag que eu já incorporava. Há algo nos estereótipos da comunidade LGBTQIAPN+ que até hoje não consegui absorver e que me recuso a desenvolver. É algo parecido com o que vejo hoje em dia, em que o conceito de drag, muitas vezes, é reduzido a um modelo massificado (por mais múltiplo que pareça esteticamente), impulsionado por realities de TV, sem levar em conta a diversidade de expressões e as especificidades regionais.
Com o tempo, porém, passei a ser reconhecida e as pessoas começaram a esperar minhas apresentações nas festas, o que me trouxe uma satisfação enorme de ver a minha arte sendo respeitada e celebrada. Eu não inventei a roda, mas sinto que meu trabalho, mais do que só entreter, tem sempre uma missão de mostrar que a arte drag é uma forma legítima de expressão, que carrega história, luta e beleza, e que, sim, somos pioneiras e protagonistas nessa revolução que está acontecendo até hoje. Celebrar esses 30 anos é também celebrar todas as pessoas que vieram antes de mim (algumas ativas ainda hoje), as que estavam ao meu lado e desistiram no meio do caminho e as que hoje seguem inspiradas, como eu fui. Afinal, a arte nunca é feita sozinha, mas sempre é multiplicada.
Quem é Dolly Piercing? Quais foram e são suas inspirações e referências para criar sua arte drag e qual a história por trás desse nome?
Dolly Piercing é uma artista honesta. Eu não me vanglorio pelo que eu não sou e nunca sabotei ninguém. Eu me formei ao longo dos anos e me tornei uma figura de resistência, já que hora ou outra eu tenho que ressurgir com uma Fênix. Acredito na arte como um espaço de transformação e liberdade que ajudou a afirmar minha sexualidade e identidade de gênero. Sou alguém que se reinventa constantemente, sempre buscando trazer algo novo para o público.
A Dolly é minha criação, mas ela também é um reflexo de quem sou, de minhas vivências, das minhas lutas e conquistas. Tanto é que meu nome de registro agora é Dolly. Minhas inspirações são muitas e vêm de diferentes lugares. A música sempre foi grande referência, com figuras como Madonna, Rita Lee, e o que passava nos tempos áureos da MTV. Essas cantoras usaram a arte para quebrar barreiras e desafiar normas. Sempre foram iconoclastas e souberam se reinventar. Eu amava também as heroínas das séries de TV dos anos 60, 70 e 80 e, claro, os desenhos animados. Além disso, o universo da arte drag em si, como Dimmy Kieer e Paulette Pink (SP), que me mostraram a força da performance e a importância de sermos nós mesmas sem medo. Mas minhas maiores referências sempre foram as pessoas ao meu redor, no meio alternativo, que me ajudaram a moldar a Dolly com muita coragem e confiança.
O nome “Dolly Piercing” surgiu de uma junção de ideias que, para mim, representam o que sou. “Dolly” faz referência a uma figura doce, mas também ao conceito de “doll” (do inglês, “boneca”), algo que carrega um certo estigma de perfeição e aparência, mas que eu subverto ao trazer algo mais autêntico. O “Piercing” é um símbolo de rebeldia e que foi uma febre entre a comunidade clubber. Juntos, eles são um sinal de que não sou apenas uma “boneca bonita”, mas alguém que quebra padrões e se posiciona. O piercing, para mim, é também uma metáfora para a ideia de perfurar e de ir além da superfície. Dolly Piercing, uma Boneca Penetrante.
Qual foi sua performance mais memorável como drag e por quê?
De todas as perguntas, esta é, sem dúvida, a que mais me dói responder. Porque é reviver um estado de esperança que hoje já se foi. Olho para trás e vejo que, apesar das dificuldades, houve momentos que marcaram minha carreira de maneira significativa. Sem dúvida, a minha melhor apresentação foi no Bar do Fit-BH [Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte], uma das raras ocasiões em que fui aprovada em um projeto. Ao longo de toda minha trajetória, só fui selecionada para apenas dois projetos, em 2008 e em 2020, ambos porque foram feitos por produtoras.
O projeto em questão consistia em um show solo como cantora no auditório secundário do Parque Municipal, durante a programação do Bar do Fit-BH, nos intervalos dos shows principais da programação com grandes artistas midiáticos. Embora ainda não fosse amplamente conhecida pelo público, tive a oportunidade de me apresentar para uma plateia que não me conhecia, e a aceitação foi impressionante. O que mais me marcou foi a sensação de que o público estava ali, presente, do começo ao fim, curtindo o que eu estava produzindo. A experiência não se diferenciava de apresentações menores, mas foi, sem dúvida, uma produção de grande porte: 45 minutos de show, com trocas de roupa e músicas sem parar com aparelhagem profissional. O mais interessante dessa apresentação foi o acolhimento que recebi, mesmo estando longe de um ambiente alternativo ou gay.
Refleti muito sobre isso e percebi que minha formação inicial no teatro foi essencial para me proporcionar uma linguagem que dialogasse com um público mais amplo, além da minha qualidade musical e visual. Mas também não posso deixar de mencionar que, em eventos como casamentos, por exemplo, muitas vezes eu me tornava a atração principal, superando até mesmo a noiva. Foram inúmeras apresentações como essa, que me permitiram ir além de ser uma drag cantora pioneira, mas também uma drag que entrou em recintos tradicionais, como eventos familiares e recepções de alto nível.
Cheguei a ter finais de semana com duas a três apresentações por dia, um ritmo que me levou a ampliar minhas fronteiras artísticas. E, para mim, outras experiências marcantes eram quando me apresentava em boates gays e as pessoas, surpreendidas por minha performance, se aproximavam e diziam: “Estou chocado! O quê, você canta? Todas aqui dublam, eu nunca vi uma drag cantando como você”. Esse tipo de reconhecimento, constante, alimentava minha esperança, mas ao mesmo tempo, me faz questionar o que de fato significa ser reconhecida e valorizada dentro do nosso próprio meio.
Como você percebe e avalia o mercado profissional para drags hoje em Belo Horizonte? O que mudou desde que você começou? Houve avanços e retrocessos?
Ser drag queen em Belo Horizonte nunca foi fácil, assim como qualquer outra forma de arte ou expressão legítima nesta cidade. Não estamos em um polo de comunicação e visibilidade com projeção nacional. Apesar das oportunidades que surgiram ao longo dos anos, a elite cultural da cidade ainda se mantém com os mesmos valores da elite econômica do Brasil: engessada na tradição e com pouca abertura para inovação.
Nos anos 90, a luta pela diversidade estava apenas começando a ganhar força. Grupos organizados promoviam debates na mídia, impulsionados pela visibilidade conquistada por manifestações como as Paradas do Orgulho LGBT+. A implantação da moeda real ainda era recente e o acesso à internet e as importações eram muito limitadas. Montar uma drag naquela época exigia muita criatividade e colaboração mútua entre artistas, que frequentemente trocavam sapatos, perucas, roupas... Porém, sem um network estabelecido, eu me vi obrigada a me virar sozinha.
Nós, artistas, sempre fomos competentes em apresentar o nosso trabalho, mas as casas noturnas nem sempre valorizavam o que investíamos. Entre as casas noturnas onde passei, os melhores proprietários foram, sem dúvida, Omar Rangel e Marcelo Marent. Lembro que, na época, o cachê das drags era equivalente a um salário mínimo por apresentação, numa época de inflação ainda instável. Já em outras casas noturnas, os donos eram difíceis de negociar, e a situação piorava com a chegada de promoters que criavam suas próprias festas. Embora nos contratassem como freelancers, a maioria não honrava seus compromissos financeiros.
Até hoje, quando falamos sobre o “mercado drag”, ele ainda é muito informal, sem a estruturação que deveria existir. Assim, seguimos sendo um trabalho informal na sociedade brasileira, refletido também aqui em Belo Horizonte. Apesar dessas limitações de cachê, com o tempo aprendi a aumentar o meu valor. A primeira estratégia foi justificar por ser a única drag cantora da cidade. Além disso, meu nome passou a estar vinculado à cultura local, pois fiz apresentações fora da comunidade gay, em eventos como casamentos, festas de 15 anos e até chás de despedida. Isso me trouxe uma maior visibilidade e, consequentemente, mais ganhos financeiros. Essas parcerias com promotores e pessoas fora da comunidade LGBT também ajudaram a aumentar a aceitação da arte drag, contribuindo para quebrar preconceitos.
Nos anos 2000, com a ascensão dos DJs, as drags começaram a perder destaque dentro da comunidade LGBT+. A partir da década de 2010, as celebridades da noite eram os DJs, e o poder das drags decaiu. Esse declínio se intensificou com a chegada dos realities norte-americanos, que popularizaram um tipo de drag mais “comercial”, o que gerou muita oferta para pouca procura. A informalidade do mercado continua presente, mas agora com a promessa de uma “ascensão” para as drags como as que têm fama atualmente. Todas almejam chegar lá acreditando na meritocracia e representatividade, mas como a Senhorita Bira denuncia, ser patrocinada pela elite brasileira para gerar milhões em lucro é para quem tem a “herança que importa”. Tem que ter pedigree ou conhecer quem tem.
No entanto, as grandes oportunidades, com contratos milionários de gravadoras ou influenciadores, ainda são exceções em um mercado predominantemente informal. A verdade é que, embora nada avance sem retrocessos, sempre há espaço para reflexão. Hoje em dia estão discutindo sobre o “Brain Rot” no nível individual e social [a partir dos impactos intelectuais, emocionais e cognitivos, sobretudo a partir do consumo incessante de conteúdos online, principalmente de baixa qualidade] e eu acho que a arte drag entra nisso também. O caminho das drags e da arte como um todo é de constantes altos e baixos, e eu continuo a batalhar por um lugar mais justo e reconhecido dentro da sociedade e do mercado cultural.
Você está se preparando para um novo espetáculo, em que tenho o prazer e a honra de ser dramaturgo e diretor, como resultado da sua Graduação em Teatro pela UFMG e um retorno ao mercado artístico. Como está sendo essa experiência e essa construção, e o que o público pode esperar deste trabalho?
O espetáculo que estou propondo se fundamenta em conceitos de autobiografia, autoficção e performance, explorando uma jornada de autodescoberta e reflexão crítica sobre minha trajetória pessoal e artística. A decisão de ingressar ao Curso de Teatro da UFMG tem como objetivo reverter uma situação de marginalização artística no contexto cultural de Belo Horizonte. A partir dessa premissa, sinto-me impelida a continuar meu projeto de reinvenção, cujo conceito central é “renascer das cinzas”, um processo que descreve exatamente o momento em que me encontro agora: Uma Boneca Esquecida em uma Caixa. Ainda que meu nome não seja amplamente reconhecido, o desafio de ser uma artista de 47 anos nesse cenário é agravado pela questão do etarismo, um obstáculo adicional que tenho enfrentado nos últimos anos.
O espetáculo, portanto, propõe uma apresentação de quem sou ou fui e uma reflexão sobre esses aspectos da minha vida, abordando tanto as vivências enriquecedoras quanto os momentos dolorosos que marcaram essa jornada. Através da narrativa, busco proporcionar ao público um olhar mais íntimo sobre minha bagagem e, ao mesmo tempo, criar uma conexão em que as pessoas possam se identificar com as injustiças que experienciei, reconhecendo-as em suas próprias histórias.
Esse projeto pode ser interpretado como uma possível conclusão de uma carreira frustrada ou, paradoxalmente, como o renascimento de algo ainda maior, além dos limites impostos pelos palcos. A indagação que surge é se, de fato, fui ou sou uma artista: talvez eu nunca tenha sido de fato reconhecida como tal, dado que a ideia de ser artista, na sociedade atual, muitas vezes está atrelada ao reconhecimento mundial ou à inserção em um sistema econômico que explora as relações humanas, alimentando a competitividade e a marginalização. Assim, o espetáculo se configura não apenas como uma performance artística, mas como uma crítica social e uma reflexão sobre o significado da arte e do reconhecimento no cenário cultural contemporâneo.
Você pode encontrar a drag Dolly Piercing através do telefone/Whatsapp (31) 99649-3809 ou pelo Instagram @dollypiercing.
Juarez Guimarães Dias é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-graduação em Comunicação, co-coordenador do Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático e Experiência Comunicacional. É publicitário, dramaturgo e diretor teatral, e docente orientador da Revista Mordidas.
