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Criado a partir da vontade de trazer a música pop em ritmo carnavalesco para BH, desde 2016 o bloco Garotas Solteiras acolhe todos que compartilham do ideal de que lacrar é um ato revolucionário. | Foto: Reprodução/Instagram/blocogarotassolteiras

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23 JAN, 2025

liberdade

Pelas ruas

Fazer drag é um ato político e, nas ruas, ainda mais.

por Felipe Pellucci

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A primeira vez que assisti a drag queens performando ao vivo foi em uma noite de sábado em novembro de 2021. Como de costume, saí com alguns amigos para a rua Sapucaí, no bairro Floresta, e, por acaso, nos deparamos com uma edição do Drags nas Ruas em frente ao Bar Xangô. Foi assim que conheci o projeto de Vitor Alves, o artista por trás da drag Yáskara Dellatorre. A iniciativa acontece até hoje em locais variados pela cidade, e nasceu pautada na acessibilidade: “Tudo veio de uma visão pessoal onde busquei entender que BH tem um cenário drag imenso e contempla uma diversidade incrível, porém que não há espaço pra todo esse cenário. Daí surgiu a ideia de ocupar espaços e meios públicos com o objetivo de levar a arte pra rua e dar voz e visibilidade também já puxando o público em geral!”, conta o criador.

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Foto: Reprodução/Instagram/vitor_allves167

Me considero fã de drags desde os 13 anos, mas tudo que acompanhava era pela internet. Então, como se pode imaginar, ver aquelas artistas se apresentando na minha frente me deixou eufórico. O show de Agatha Glosses e o lip sync da música “All I Want for Christmas Is You” de Lohanna Vinn não só me conquistaram no dia, como me fizeram voltar para outras edições. Foi um momento marcante que me aproximou da arte drag e me fez começar a conhecer a cena local, a ponto de estar hoje produzindo essa revista.

 

Estar nas ruas é um ato simbólico, com um impacto acima de tudo político. Apesar do espaço público ser muitas vezes tido como democrático, fazer-se visível nesse lugar é um movimento de resistência quando seu direito de existir plenamente é negado, como é o caso de diversos grupos minorizados. No caso da população LGBTQIAPN+, falamos de corpos que constantemente são subjugados a espaços reclusos, como casas de festas noturnas, e têm que lutar para se fazerem presentes fora deles. Arthur Mesquita, Doutor em Comunicação pela UFMG e pesquisador da arte drag, observa em sua tese que, “essas expressões percebidas como não hegemônicas passaram a figurar no espaço público como uma reivindicação subversiva da sua legitimidade”.

A pauta se mostra ainda mais relevante ao reconhecer os desafios estruturais que existem para tirar projetos queer independentes do papel. A ocupação desses espaços em Belo Horizonte é uma história atravessada por tensões entre manifestações populares e o poder público. O próprio carnaval da cidade, hoje o terceiro maior do país, renasceu com fôlego na última década a partir de respostas a decretos proibitivos. Um dos episódios mais notáveis foi com a Banda Mole, hoje o bloco mais antigo da capital, fundado em 1975, que foi impedido de desfilar em 2004, sem concessão de autorização oficial. Porém, a revolta da população foi tanta que resultou na criação de uma lei, não só garantindo apoio e logística por parte da prefeitura, mas instituindo o “Dia Municipal da Banda Mole” no sábado anterior à folia.

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Banda Mole desfilando na Rua da Bahia, na BH dos anos 80. | Foto: Reprodução/Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte - ASCOM

Cheia de tradição, a Banda Mole sempre foi uma festa para todos os tipos de pessoas, e acabou se tornando uma menção indispensável quando falamos de arte transformista em BH. Para além dos diferentes ritmos tocados, um de seus pilares é a liberdade para vestir o que quiser: homens podem usar roupas tidas como femininas e mulheres podem usar roupas tidas como masculinas. O lema “pernas pro ar, que ninguém é de ferro!” representa bem o espírito de farra que fez do bloco um evento tão querido pela população LGBTQIAPN+ da cidade e também um palco para visibilidade de muitas pessoas trans e travestis.

“A Banda Mole já nasceu sendo o paraíso da diversidade. A pessoa pode ser tudo” disse Luiz Márcio Jacaré Ladeira, um dos fundadores, para o Estado de Minas em 2016. Na mesma matéria, o produtor Kuru Lima aponta que o público do bloco tem se tornado mais familiar e menos LGBT, desde a criação da Parada do Orgulho. Porém, o costume de brincar com as roupas e estereótipos de gênero se mantém.

Essa irreverência transborda nos desfiles da Banda Mole há quase meio século, e conquistou grande relevância histórica local. Apesar de só ter tido contato com o que é viver a Banda Mole através de conversas com conhecidos e entrevistados, é impossível não compartilhar de experiências similares no carnaval.

Afinal, nos últimos anos, esse bastão da liberdade passou a ser carregado também por novos blocos da capital mineira, como o Garotas Solteiras. Criado a partir da vontade de trazer a música pop em ritmo carnavalesco para BH, desde 2016 o coletivo acolhe todos que compartilham do ideal de que lacrar é um ato revolucionário, posicionamento que o tornou uma das programações mais populares do carnaval.

A drag queen Joanna Mescladi fala sobre sua sensação em fazer parte do bloco: “Participar do Garotas Solteiras é um privilégio imenso, porque essa experiência amplifica a minha arte e me conecta com um dos blocos mais icônicos do carnaval belorizontino. (...) É uma celebração, que conversa diretamente com a arte drag, no fim das contas. Carnaval é sobre brilho, sobre fantasia, sobre liberdade, sobre criatividade, e acho que tudo isso materializa o que significa ser drag.”

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Fotos: [1] Marcelo Batista, [2] @imthebadgab

Joanna também comenta que apesar da pausa que o cortejo deu em 2024, necessária para o grupo adequar sua estrutura ao nível de demanda que alcançou, acredita que ele vai voltar ainda mais forte em 2025. A drag Charlotte, coreógrafa e produtora do Garotas, ressalta no pronunciamento no Instagram que “garotas solteiras somos todas nós”, porque é dessa força que vem a união e a contribuição de cada um para um espaço acolhedor, inclusivo e que celebra as diversidades.

 

A falta do bloco nas ruas foi sentida pelos foliões, e por mim, após ter tido a oportunidade de conhecê-lo em 2023. Acompanhar junto de 400 mil pessoas o trio que homenageava Rihanna como a diva da edição trouxe à tona algo mágico, que reflete bem as descrições de Joanna e Charlotte sobre o que o Garotas Solteiras evoca - o sentimento de estar no meio de tanta gente em um ambiente LGBTQIAPN+, com todas e todos vivendo sem pedir permissão para serem quem são. Em retrospectiva, essa atmosfera é em grande parte responsável pelo dia do cortejo ter sido tão marcante.

Felizmente, o carnaval belo-horizontino tem abarcado cada vez mais festas próprias do público queer, um  exemplo recente é o Bloco da Eleganza. A Eleganza em si não é novidade na capital, já que desde 2013 o coletivo movimenta a cena drag brasileira promovendo diversos tipos de eventos, se expandindo até para outras cidades. Depois de uma década de existência, a festa também se junta à folia e reúne milhares de pessoas na rua Sapucaí, trazendo alegria para o carnaval que extrapola o tamanho das ruas.

Fran GlamGlam, produtora da festa, bloco e trio elétrico Eleganza, comenta que “O maior desafio foi como estruturar uma festa que seja democrática e que possa sempre exaltar a arte dando espaço de palco aos artistas da cena de BH, demonstrando a força política da arte. (...) No próximo carnaval faremos o nosso terceiro desfile e queremos entregar um cortejo lindo, diverso, alegre e seguro para nosso público, ocupando as ruas de BH com arte drag, consciência social e política e demonstrando a força e a alegria da comunidade LGBTQIAPN+”.

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Fotos: [1] Reprodução/Instagram/franglamglam, [2] Estúdio Gomsr

Para além do carnaval, a Parada LGBTQIA+ de Belo Horizonte é o maior exemplo de um ambiente onde pessoas queer podem ser quem são, livremente, em multidão. Afinal, esteja a concentração marcada na Praça da Estação ou na Afonso Pena, o evento toma a cidade inteira e cria cenas inesquecíveis. No caminho para a minha primeira participação, em 2019, entrei em um ônibus em que todos estavam cantando “Coisa Boa”, da Gloria Groove, e poucas situações se comparam em relação ao sentimento instantâneo de acolhimento. O dia foi ainda mais especial pelo tema da edição, que relembrava a Revolta de Stonewall em seu aniversário de 50 anos, mostrando a evolução do movimento e destacando a importância de evitar retrocessos políticos.


Depois de dois anos em que não pude ir, vejo a Parada com um certo compromisso de comparecer, tendo em mente a frase de um adesivo da edição de 2022 que guardo desde então: Orgulho é luta. Completando 25 anos de existência em 2024, a Parada é organizada pelo Cellos-MG em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e tem se superado na quantidade de pessoas que reúne a cada ano. A veia política da organização do evento se destaca, e nos ajuda a perceber que estar ali, juntos naquela grande festa, é uma celebração e um posicionamento necessários. Afinal, apesar de todas as adversidades encontradas sobre nossos direitos e liberdade, nos mantemos presentes.

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24ª Parada LGBTQIA+ de BH | Foto: Fernando Michel/Hoje em Dia

Para finalizar, compartilho versos do hino do bloco Garotas Solteiras:

“Quem foi que disse que a rua não é lugar de brilhar?

A gente ocupa, toma frente, vem pra escandalizar

A gente chega na batida com amor e respeito

E traz a luta por aquilo que é nosso de direito”

Felipe Pellucci é estudante de Publicidade e Propaganda (UFMG) e criador da Mordidas.

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